Perguntaram a Maria Callas o que era a Ópera.
A resposta foi rápida e curta : "Verdi".
sexta-feira, 1 de junho de 2007
Flagstad
Sobre esta genial cantora, vamos deixar falar quem sobre ela muito sabe.
Pode avançar, Raul.
Um abraço
15 comentários:
Anónimo
disse...
Uma breve nota em forma de homenagem a Kirsten Flagstad (1895-1962): Kirsten Flagstad foi considerada desde a sua estreia no Met no dia 2 de Fevereiro de 1935 até meados da década de cinquenta a maior cantora do mundo. Fazendo um balanço dos grandes cantores do século XX a revista Classic CD colocou-a em tal posição. Ainda recentemente o prestigiado crítico Alan Blyth falando dela dizia que "embora para alguns ela não seja a melhor cantora de todos os tempos, ela tem de estar de certeza entre as melhores 10 vozes do século, entre vozes masculinos e femininas".
a)Continuando: O que caracterizou esta excepcional cantora? Kirsten Flagstad tinha uma voz com um enorme volume, que se projectava sem o mínimo esforço e sem quebras de respiração. A coluna de som era assombrosa cortando qualquer orquestra por maior volume que tivesse. A sua voz chegava a qualquer canto de um teatro. O timbre, por sua vez, era de uma pureza e beleza totais. E o que tornava ainda mais esta voz tão fantástica era o facto de que, qualquer que fosse o registo, mantinha sempre a mesma qualidade, parecendo que tinha infinitas reservas vocálicas. Alguém comparou a sua voz a um Rolls-Royce no que toca à magnificência e qualidade do produto. Recomendo uma pausa exemplificativa e ouçamos a sua Avé Maria de Schubert, onde se nota a perfeição da linha de canto e o facto da voz sair sem o maior esforço, igual em todos os registos. E pensar que a cantora já tinha 61 anos! Raul
b)Continuando: O reportório da Flagstad foi essencialmente Wagner, sendo a sua maior intérprete em todo século XX. Mas a grande cantora foi também uma sublime intérprete da Leonora do "Fidélio" de Beethoven. No reportório da Flagstad ainda encontramos inúmeras canções com piano ou com orquestra, principalmente de compositores nórdicos, nomeadamente do seu conterrâneo Grieg, que a cantora teve a preocupação de divulgar. No entanto, o que nós estamos aqui a chamar o "reportório da Flagstad" é aquele a que normalmente associamos a cantora, e não o seu verdadeiro reportório que é mais extenso e que remete para aquele que se refere aos anos em que cantou exclusivamente na sua Noroega e, conforme o uso dos tempos, em noroeguês. Neste caso vemos que a Flagstad cantou opereta, a Aida, o Otelo, a Tosca, a Boémia e também a Micaela da Carmen. Destas interpretações nada nos chegou gravado, pois a cantora a partir dos anos trinta consagrou-se totalmente às heroínas wagnerianas e à Leonora beethoveniana. Raul
c)Continuando. Se a voz da Flagstad foi única, também única foi a história da sua carreira. Nascida no seio de uma família de pessoas ligadas à música, aprendeu a cantar desde muito nova. Com dez anos recebeu como presente a partitura do "Lohengrin" de Wagner e aprendeu na língua original, o alemão, o papel de Elsa. É com 15 anos que Kirsten canta o sonho de Elsa numa festa em que está presente uma tia, que era professora de canto e que, muito avisadamente, alerta os pais para os perigos da voz receber um treino incorrecto, pelo que fica decidido começar um estudo de três anos de canto com essa tia. Entretanto a escola secundária termina (Como estava avançada a educação dos nórdicos!) e a jovem estudante de canto pensa tirar medicina, tentando fazer o curso de seis anos em três. Isto leva a um esgotamento, o que faz com que ela só faça parte dos exames e continue a estudar canto. Em 12 de Dezembro de 1913 Kirsten Flagstad estreia-se no Teatro Nacional de Kristiania, antigo nome de Oslo, na ópera "Tiefland" de Eugen d´Albert (uma ópera lindíssima de que possuo uma gravação) e o êxito que obtem fá-la então decidir por iniciar uma carreira de cantora. Em 1914 surgem logo as primeiras gravações, que, caso único na história do canto, se compararmos com aquelas que fez quarenta e tal anos depois, nomeadamente a Fricka d´O Ouro do Reno, em 1958, verificamos que praticamente quase nada mudou nas características essenciais da sua voz. Raul
d)Continuando: Nos 18 anos que se seguem K.F. cantará operetas, nomeadamente o "Morcego" de Strauss e papéis verdianos e puccinianos. Entretanto casa, tem uma filha e separa-se. Em 1930 casa-se novamente, desta vez com um homem abastado, o industrial Henry Johansen, o que lhe permitirá não olhar para a sua carreira como o seu sustento. São desta época inúmeras gravações, principalmente de compositores escandinavos, gravações essas que são hoje religiosamente conservadas. E volto a repetir que o que é mais extraordinário é que se compararmos estas primeiras gravações de 1914 e 1915 com a última, 45 anos depois, a voz que ouvimos é praticamente a mesma. A firmeza, a força e a ressonância são qualidades que a grande cantora soube conservar até aos últimos dias. Voltando à sua carreira, verificamos que só em 1929, aos 34 anos de idade, é que K. F. aborda pela primeira vez Wagner, ao cantar o Lohengrin. Seguir-se-á depois o Tristão e Isolda, ópera em que foi inultrapassável e que cantou 182 vezes ao longo da sua carreira. Mais tarde a Flagstad dirá que nesta primeira abordagem de Wagner reparou que a sua voz não só correspondia às exigências das partituras como sentiu que ela se alargava sem o menor esforço. Raul
e)Continuando: Após o segundo casamento, Kirsten Flagstad começou a ponderar em abandonar os palcos, cantando mais raramente. Mas foi nessa altura que ao cantar a sua primeira Isolda contracenando com a futura estrela do Met, o grande baixo Alexander Kipnis, deu oportunidade a que este tivesse conhecimento do seu valor fenomenal. Foi também nessa altura que, por iniciativa de Ellen Gulbransen (uma famosa wagneriana, admirada por Toscanini e igualmente noroeguesa) que foi conseguida em 1933 uma aududição no "templo wagneriano" da Alemanha: Beyreuth. A Flagstad é então ouvida por quem nessa altura dirigia Beyreuth: a inglesa Winifred Wagner, a nora do compositor, que a contrata para duas temporadas, mas para papéis menores (Gutrune e uma das Nornas). Canta por essa altura a parte de soprano da 9ª Sinfonia de Beethoven dirigida por Richard Strauss, seu futuro amigo. Felizmente para a Flagstad, e para nós, a publicidade feita por Alexander Kipnis e igualmente a boa impressão que as representações de Beyreuth deixaram, levaram a que o director, assim como o director musical, do Met a quisessem ouvir. Estes estavam na Europa à procura de um soprano wagneriano, já que a prima-dona wagneriana do Met, a fabulosa Frieda Leider, era obrigada a regressar à Alemanha para segurar a vida do seu marido judeu das garras nazis. A audição teve lugar em Genebra em 1934 e o espanto foi tão grande que a cantora foi logo contratada por um ano com a condição de aprender as três Brunildes da Tetralogia de Wagner, a Isolda, a Leonora do "Fidélio" e a Marachala do Cavaleiro da Rosa, papel que acabou por nunca cantar. Raul
f)Continuando: No dia 2 de Fevereiro (o meu aniversário!) de 1935 fez-se história no mundo da história do canto, quando Kirsten Flagstad se estreou em Nova Iorque no papel de Sieglinde. A prestação foi um triunfo, sendo de imediato designada pela imprensa e pelos melómanos a maior cantora wagneriana do mundo. Felizmente esta representação histórica está registada e eu, para meu gáudio, tenho-a. Em consequência desta noite o contrato da Flagstad é modificado para que ele seja todo consagrado a Wagner. E o que se viu foi que uma cantora que já pensava retirar-se vai reiniciar uma carreira extrordinária aos 40 anos. Kirsten Flagstad passou a ser a estrela do Met, levando a que duas das maiores cantoras do século, ao nível da Flagstad, que o eram Rosa Ponselle e Lotte Lehmann, deixassem de o ser. A primeira retirou-se de cena passado pouco tempo e precocemente, a segunda passou a um segundo plano e começou uma excepcional carreira de cantora de "lied". De 1935 a 1941 Kirsten Flagstad fez de Nova Iorque a sua casa principal, onde contracenou muitas vezes com a nata do canto wagneriano, nomeadamente Lauritz Merchior, o melhor tenor wagneriano de todos os tempos, e Friedrich Schorr, o melhor Wotam entre as guerras. A cantora, entretanto, fazia anualmente as suas visitas a Londres, onde obteve triunfos esmagadores. Um dos "Tristão e Isolda" dessas visitas, dirigido por Thomas Beechman, está gravado. Paris e outros locais da Europa também a ouviram, mas não tão regularmente como em Londres. As férias eram passadas na Noroega, onde recebeu as mais altas distinções. Na sua pátria para além de representações dá inúmeros concertos. Por todo o lado quer seja na sua Noroega quer seja no resto da Europa o êxito é absoluto. Raul
g)Continuando: Mas com o advento da guerra e por causa da Noroega ter sido ocupada pelos Alemães, a vida da Flagstad vai sofrer grandes alterações, começando a ter de substituir muita da sua programação, geralmente virada para Wagner, por causa de alguma hostilidade que já se fazia sentir na América. Os seus concertos começam a ter uma componente escandinava mais forte. Mas em 1941 Kirsten Flagstad toma uma decisão que lhe irá custar inúmeros dissabores, pois resolve juntar-se ao marido na Noroega ocupada. A viagem fá-la obviamente pelo Atlântico, desembarcando, segundo os seus biógrafos, em Lisboa, cidade onde nunca cantou, seguindo depois para Oslo. Durante a ocupação alemã a cantora manteve-se praticamente inactiva, nunca cantando na sua pátria, não satisfazendo, por isso, a vontade dos ocupantes. As escassas representações que fez foram na Suécia e na Suiça, que eram países neutrais. Com o fim da guerra vieram o ajustes de contas com o marido, que, entretanto fizera negócios com os alemães, e, por tabela, com Kirsten Flagstad. O marido é preso, acabando por morrer passado um ano na prisão sem que a mulher o pudesse ter visitado; quanto à Flagstad é-lhe retirado o passaporte. Começa, então, a nascer na imprensa uma certa hostilidade à cantora que sempre que se refere ao marido nunca o nomeia pelo nome, mas sempre como o marido de Kirsten Flagstad. Só no final de 1946 é que lhe é permitido sair do país e no início de 1947 dá concertos em Londres, Paris e canta o "Tristão e Isolda" no Scala de Milão. E o que foi mais espantoso para todos os amiradores da Flagstad e do mundo da ópera, em geral, é que , embora a cantora tivesse estado afastada do grande público por quase seis anos, a voz permaneceu intacta, conservando todo o esplendor do passado e até o escurecimento que a idade lhe deu a tornou mais expressiva. Raul
h)Continuando: Mas um obstáculo havia para vencer: voltar à América, onde parte da imprensa via o seu regresso sem simpatia. O seu primeiro concerto em Boston, o que se seguiu em Nova Iorque e, especialmente, o de Filadélfia, são todos eles acompanhados de manifestações hostis dentro e fora da sala de concertos. Kirsten Flagstad resolve ignorar tal atitude e, felizmente, prossegue a sua carreira. No final do ano canta "O Tristão e Isolda" em Chicago e em 1948 tem um enorme sucesso em Londres. A partir de Agosto faz uma "tournée" pela Améica do Sul. Em 1949 depois de alguns concertos nos Estados Unidos volta à Europa para concertos em Londres, Amesterdão, Bruxelas e outras cidades, nomeadamente em Milão onde canta "A Valquíria" dirigida por Wilhelm Furtwangler; seguidamente, também dirigida por este génio, canta a Leonora do "Fidélio" no Festival de Salzburgo. Finalmente e depois de várias dificuldades que opuseram certas ligas de veteranos de guerra à direcção do teatro de ópera, Kirsten Flagstad canta em Setembro de 1949 na Ópera de S.Francisco. Ao ouvirem-na os críticos não hesitam em afirmarque passado todo este tempo a voz da cantora não perdeu nenhuma das suas qualidades e continua firmemente a ser o maior soprano wagneriano do mundo. Este concerto, afortunadamente, foi radiodifundido e posteriormente gravado. A gravação pode ser hoje ouvida em CD. Neste CD para além de Kirsten Flagstad se fazer acompanhar do tenor Set Svanholm, seu parceiro em muitos concertos e presente na cèlebre gravação d´"O Ouro do Reno" do Solti, estão contidas as palavras do apresentador que se refere a Flagstad como "the best living wagnerian soprano". Outra coisa para referenciar: o recital começa com a Balada de Senta do "Navio Fantasma" e vemos que a nota final da ária é dada sem quebra da linha de canto, sem pausa respiratória e a todo o volume. Se compararmos com outras grandes intérpretes, por exemplo Jessye Norman, esta nota e dada com quebra para respirar. Raul
i)Continuando: Em 1950 é a "première" no Royal Albert Hall das "Quatro Últimas Canções" de Ricardo Strauss, o testamento musical do compositor, falecido no ano anterior. Kirsten Flagstad é a solista escolhida, provavelmente pelo próprio Autor, e Furtwangler o maestro. Esse recital histórico foi há poucos meses editado depois de o som ter sido bastante depurado. Surprendentemente, ou talvez não, foi no mês de Abril passado o Cd mais vendido na Grã-Bretanha. Também em 1950 Kirsten Flagstad canta, igualmente dirigida por Furtwangler, a Tetralogia dos Nibelungos no Scala de Milão. Mas em 22 de Janeiro de 1951 é o retorno ao Metropolotan de Nova Iorque com o argumento do seu director "Por que razão o melhor teatro do mundo não há-de receber a melhor cantora do mundo?". A ópera foi o "Tristão e Isoçda" e a cantora no final do primeiro acto é chamada à boca de cena 19 vezes para receber aplausos, algo que constitui um recorde na história daquele teatro. Todas as representações que se seguem são todos triunfantes, onde quer que elas sejam. O ano de 1952 vai ser uma referência na história das gravações de óperas. Kirstem Flagstad, a imortal Isolda, dirigida pelo melhor wagneriano de sempre, Wilhelm Furtwangler, e apoiada por um grande elenco, de que se destaca o jovem Dietrich Fischer-Diskau, grava para a companhia EMI o "Tristão e Isolda" de Wagner. Uma Isolda de 57 anos para a eternidade. A gravação é justamente considerada como uma das melhores que se fizeram, como a "Tosca" da Calas ou o "Cavaleiro da Rosa" da Schwarzkopf. Qualquer melómano, apreciador de ópera, deve possuí-la. Depois desta gravação Kirstem Flagstad retira-se de cena, só dando concertos esporádicos e em forma de despedida. O de Nova Iorque em 1955 está gravado e mostra ainda a voz praticamente igual ao esplendor anterior.
j)Concluindo: Em 1956 assina um contrato com os estúdios Decca, efectuando inúmeras gravações que incluem "lieder" de Schubert, Brahms, Grieg, Sibelius e muito Wagner, para além da ópera "Alceste" de Gluck. Esta série de gravações, que constitui um legado artístico de valor inestimável, culmina em 1958 com a gravação do papel de Fricka d´ "O Ouro do Reno" de Wagner, sob a direcção do maestro Georg Solti. É o início da série das quatro óperas do "Anel dos Nibelungos" e que é conhecida pelo "Anel do Solti", sem dúvida o maior feito discográfico da história da ópera. Esta épica realização terminará em 1965 com o "Crepúsculo dos Deuses", este já cantado por Birgit Nilsson, a justa sucessora de Kirsten Flagstad. Segundo as notas da Decca, aquando do primeiro ensaio, quando aquela senhora alta, já sexagenária, abriu a boca para soltar as primeiras notas, toda a Orquestra Filarmónica de Viena se virou para trás olhando, estupefacta com a grandeza de tão extraordinária voz. Em 1958 Kirsten Flagstad é nomeada directora do Teatro de Ópera da Noroega, mas dois anos depois resigna devido aos tratamentos que uma terrível doença a começa a miná-la. Em 1961 ainda visita familiares e amigos nos Estados Unidos, mas vai passar a maior parte do tempo do ano seguinte no hospital, vindo a falecer no dia 7 de Dezembro de 1962. A sua memória é passados alguns anos perpetrada num museu na sua terra natal, Hamar, a umas dezenas de quilómetros de Oslo. O legado discográfico da Flagstad é considerável, sendo grande parte registos ao vivo. Tenho, felizmente, parte considerável desse legado. A aconselhar o essencial recomendava: O Tristão e Isolda (Furtwangler, EMI) A Valquíria: Primeiro Acto ( Knappertbusch, Decca) Wesendonck-Lieder & Arias (EMI 7243 5 62957 2) Raul
Caro José, Obrigado pelo seu obrigado, mas acredite com a maior das sinceridades que quem aqui tem de dizer obrigado sou eu, pois deu-me a oportunidade de prestar uma simples homenagem a Kirsten Flagstad e isso valeu muito para mim. Raul
15 comentários:
Uma breve nota em forma de homenagem a Kirsten Flagstad (1895-1962):
Kirsten Flagstad foi considerada desde a sua estreia no Met no dia 2 de Fevereiro de 1935 até meados da década de cinquenta a maior cantora do mundo. Fazendo um balanço dos grandes cantores do século XX a revista Classic CD colocou-a em tal posição. Ainda recentemente o prestigiado crítico Alan Blyth falando dela dizia que "embora para alguns ela não seja a melhor cantora de todos os tempos, ela tem de estar de certeza entre as melhores 10 vozes do século, entre vozes masculinos e femininas".
a)Continuando:
O que caracterizou esta excepcional cantora?
Kirsten Flagstad tinha uma voz com um enorme volume, que se projectava sem o mínimo esforço e sem quebras de respiração. A coluna de som era assombrosa cortando qualquer orquestra por maior volume que tivesse. A sua voz chegava a qualquer canto de um teatro. O timbre, por sua vez, era de uma pureza e beleza totais. E o que tornava ainda mais esta voz tão fantástica era o facto de que, qualquer que fosse o registo, mantinha sempre a mesma qualidade, parecendo que tinha infinitas reservas vocálicas. Alguém comparou a sua voz a um Rolls-Royce no que toca à magnificência e qualidade do produto.
Recomendo uma pausa exemplificativa e ouçamos a sua Avé Maria de Schubert, onde se nota a perfeição da linha de canto e o facto da voz sair sem o maior esforço, igual em todos os registos. E pensar que a cantora já tinha 61 anos!
Raul
b)Continuando:
O reportório da Flagstad foi essencialmente Wagner, sendo a sua maior intérprete em todo século XX. Mas a grande cantora foi também uma sublime intérprete da Leonora do "Fidélio" de Beethoven. No reportório da Flagstad ainda encontramos inúmeras canções com piano ou com orquestra, principalmente de compositores nórdicos, nomeadamente do seu conterrâneo Grieg, que a cantora teve a preocupação de divulgar. No entanto, o que nós estamos aqui a chamar o "reportório da Flagstad" é aquele a que normalmente associamos a cantora, e não o seu verdadeiro reportório que é mais extenso e que remete para aquele que se refere aos anos em que cantou exclusivamente na sua Noroega e, conforme o uso dos tempos, em noroeguês. Neste caso vemos que a Flagstad cantou opereta, a Aida, o Otelo, a Tosca, a Boémia e também a Micaela da Carmen. Destas interpretações nada nos chegou gravado, pois a cantora a partir dos anos trinta consagrou-se totalmente às heroínas wagnerianas e à Leonora beethoveniana.
Raul
c)Continuando.
Se a voz da Flagstad foi única, também única foi a história da sua carreira. Nascida no seio de uma família de pessoas ligadas à música, aprendeu a cantar desde muito nova. Com dez anos recebeu como presente a partitura do "Lohengrin" de Wagner e aprendeu na língua original, o alemão, o papel de Elsa. É com 15 anos que Kirsten canta o sonho de Elsa numa festa em que está presente uma tia, que era professora de canto e que, muito avisadamente, alerta os pais para os perigos da voz receber um treino incorrecto, pelo que fica decidido começar um estudo de três anos de canto com essa tia. Entretanto a escola secundária termina (Como estava avançada a educação dos nórdicos!) e a jovem estudante de canto pensa tirar medicina, tentando fazer o curso de seis anos em três. Isto leva a um esgotamento, o que faz com que ela só faça parte dos exames e continue a estudar canto.
Em 12 de Dezembro de 1913 Kirsten
Flagstad estreia-se no Teatro Nacional de Kristiania, antigo nome de Oslo, na ópera "Tiefland" de Eugen d´Albert (uma ópera lindíssima de que possuo uma gravação) e o êxito que obtem fá-la então decidir por iniciar uma carreira de cantora. Em 1914 surgem logo as primeiras gravações, que, caso único na história do canto, se compararmos com aquelas que fez quarenta e tal anos depois, nomeadamente a Fricka d´O Ouro do Reno, em 1958, verificamos que praticamente quase nada mudou nas características essenciais da sua voz.
Raul
d)Continuando:
Nos 18 anos que se seguem K.F. cantará operetas, nomeadamente o "Morcego" de Strauss e papéis verdianos e puccinianos. Entretanto casa, tem uma filha e separa-se. Em 1930 casa-se novamente, desta vez com um homem abastado, o industrial Henry Johansen, o que lhe permitirá não olhar para a sua carreira como o seu sustento. São desta época inúmeras gravações, principalmente de compositores escandinavos, gravações essas que são hoje religiosamente conservadas. E volto a repetir que o que é mais extraordinário é que se compararmos estas primeiras gravações de 1914 e 1915 com a última, 45 anos depois, a voz que ouvimos é praticamente a mesma. A firmeza, a força e a ressonância são qualidades que a grande cantora soube conservar até aos últimos dias.
Voltando à sua carreira, verificamos que só em 1929, aos 34 anos de idade, é que K. F. aborda pela primeira vez Wagner, ao cantar o Lohengrin. Seguir-se-á depois o Tristão e Isolda, ópera em que foi inultrapassável e que cantou 182 vezes ao longo da sua carreira. Mais tarde a Flagstad dirá que nesta primeira abordagem de Wagner reparou que a sua voz não só correspondia às exigências das partituras como sentiu que ela se alargava sem o menor esforço.
Raul
e)Continuando:
Após o segundo casamento, Kirsten Flagstad começou a ponderar em abandonar os palcos, cantando mais raramente. Mas foi nessa altura que ao cantar a sua primeira Isolda contracenando com a futura estrela do Met, o grande baixo Alexander Kipnis, deu oportunidade a que este tivesse conhecimento do seu valor fenomenal. Foi também nessa altura que, por iniciativa de Ellen Gulbransen (uma famosa wagneriana, admirada por Toscanini e igualmente noroeguesa) que foi conseguida em 1933 uma aududição no "templo wagneriano" da Alemanha: Beyreuth. A Flagstad é então ouvida por quem nessa altura dirigia Beyreuth: a inglesa Winifred Wagner, a nora do compositor, que a contrata para duas temporadas, mas para papéis menores (Gutrune e uma das Nornas). Canta por essa altura a parte de soprano da 9ª Sinfonia de Beethoven dirigida por Richard Strauss, seu futuro amigo.
Felizmente para a Flagstad, e para nós, a publicidade feita por Alexander Kipnis e igualmente a boa impressão que as representações de Beyreuth deixaram, levaram a que o director, assim como o director musical, do Met a quisessem ouvir. Estes estavam na Europa à procura de um soprano wagneriano, já que a prima-dona wagneriana do Met, a fabulosa Frieda Leider, era obrigada a regressar à Alemanha para segurar a vida do seu marido judeu das garras nazis.
A audição teve lugar em Genebra em 1934 e o espanto foi tão grande que a cantora foi logo contratada por um ano com a condição de aprender as três Brunildes da Tetralogia de Wagner, a Isolda, a Leonora do "Fidélio" e a Marachala do Cavaleiro da Rosa, papel que acabou por nunca cantar.
Raul
Foi uma surpresa... mt agradável...
encontrar este blogue...
Adoro musica !
f)Continuando:
No dia 2 de Fevereiro (o meu aniversário!) de 1935 fez-se história no mundo da história do canto, quando Kirsten Flagstad se estreou em Nova Iorque no papel de Sieglinde. A prestação foi um triunfo, sendo de imediato designada pela imprensa e pelos melómanos a maior cantora wagneriana do mundo. Felizmente esta representação histórica está registada e eu, para meu gáudio, tenho-a.
Em consequência desta noite o contrato da Flagstad é modificado para que ele seja todo consagrado a Wagner. E o que se viu foi que uma cantora que já pensava retirar-se vai reiniciar uma carreira extrordinária aos 40 anos.
Kirsten Flagstad passou a ser a estrela do Met, levando a que duas das maiores cantoras do século, ao nível da Flagstad, que o eram Rosa Ponselle e Lotte Lehmann, deixassem de o ser. A primeira retirou-se de cena passado pouco tempo e precocemente, a segunda passou a um segundo plano e começou uma excepcional carreira de cantora de "lied".
De 1935 a 1941 Kirsten Flagstad fez de Nova Iorque a sua casa principal, onde contracenou muitas vezes com a nata do canto wagneriano, nomeadamente Lauritz Merchior, o melhor tenor wagneriano de todos os tempos, e Friedrich Schorr, o melhor Wotam entre as guerras. A cantora, entretanto, fazia anualmente as suas visitas a Londres, onde obteve triunfos esmagadores. Um dos "Tristão e Isolda" dessas visitas, dirigido por Thomas Beechman, está gravado. Paris e outros locais da Europa também a ouviram, mas não tão regularmente como em Londres. As férias eram passadas na Noroega, onde recebeu as mais altas distinções. Na sua pátria para além de representações dá inúmeros concertos. Por todo o lado quer seja na sua Noroega quer seja no resto da Europa o êxito é absoluto.
Raul
g)Continuando:
Mas com o advento da guerra e por causa da Noroega ter sido ocupada pelos Alemães, a vida da Flagstad vai sofrer grandes alterações, começando a ter de substituir muita da sua programação, geralmente virada para Wagner, por causa de alguma hostilidade que já se fazia sentir na América. Os seus concertos começam a ter uma componente escandinava mais forte. Mas em 1941 Kirsten Flagstad toma uma decisão que lhe irá custar inúmeros dissabores, pois resolve juntar-se ao marido na Noroega ocupada. A viagem fá-la obviamente pelo Atlântico, desembarcando, segundo os seus biógrafos, em Lisboa, cidade onde nunca cantou, seguindo depois para Oslo.
Durante a ocupação alemã a cantora manteve-se praticamente inactiva, nunca cantando na sua pátria, não satisfazendo, por isso, a vontade dos ocupantes. As escassas representações que fez foram na Suécia e na Suiça, que eram países neutrais.
Com o fim da guerra vieram o ajustes de contas com o marido, que, entretanto fizera negócios com os alemães, e, por tabela, com Kirsten Flagstad. O marido é preso, acabando por morrer passado um ano na prisão sem que a mulher o pudesse ter visitado; quanto à Flagstad é-lhe retirado o passaporte. Começa, então, a nascer
na imprensa uma certa hostilidade à cantora que sempre que se refere ao marido nunca o nomeia pelo nome, mas sempre como o marido de Kirsten Flagstad. Só no final de 1946 é que lhe é permitido sair do país e no início de 1947 dá concertos em Londres, Paris e canta o "Tristão e Isolda" no Scala de Milão. E o que foi mais espantoso para todos os amiradores da Flagstad e do mundo da ópera, em geral, é que , embora a cantora tivesse estado afastada do grande público por quase seis anos, a voz permaneceu intacta, conservando todo o esplendor do passado e até o escurecimento que a idade lhe deu a tornou mais expressiva.
Raul
h)Continuando:
Mas um obstáculo havia para vencer: voltar à América, onde parte da imprensa via o seu regresso sem simpatia. O seu primeiro concerto em Boston, o que se seguiu em Nova Iorque e, especialmente, o de Filadélfia, são todos eles acompanhados de manifestações hostis dentro e fora da sala de concertos. Kirsten Flagstad resolve ignorar tal atitude e, felizmente, prossegue a sua carreira. No final do ano canta "O Tristão e Isolda" em Chicago e em 1948 tem um enorme sucesso em Londres. A partir de Agosto faz uma "tournée" pela Améica do Sul.
Em 1949 depois de alguns concertos nos Estados Unidos volta à Europa para concertos em Londres, Amesterdão, Bruxelas e outras cidades, nomeadamente em Milão onde canta "A Valquíria" dirigida por Wilhelm Furtwangler; seguidamente, também dirigida por este génio, canta a Leonora do "Fidélio" no Festival de Salzburgo. Finalmente e depois de várias dificuldades que opuseram certas ligas de veteranos de guerra à direcção do teatro de ópera, Kirsten Flagstad canta em Setembro de 1949 na Ópera de S.Francisco. Ao ouvirem-na os críticos não hesitam em afirmarque passado todo este tempo a voz da cantora não perdeu nenhuma das suas qualidades e continua firmemente a ser o maior soprano wagneriano do mundo. Este concerto, afortunadamente, foi radiodifundido e posteriormente gravado. A gravação pode ser hoje ouvida em CD. Neste CD para além de Kirsten Flagstad se fazer acompanhar do tenor Set Svanholm, seu parceiro em muitos concertos e presente na cèlebre gravação d´"O Ouro do Reno" do Solti, estão contidas as palavras do apresentador que se refere a Flagstad como "the best living wagnerian soprano". Outra coisa para referenciar: o recital começa com a Balada de Senta do "Navio Fantasma" e vemos que a nota final da ária é dada sem quebra da linha de canto, sem pausa respiratória e a todo o volume. Se compararmos com outras grandes intérpretes, por exemplo Jessye Norman, esta nota e dada com quebra para respirar.
Raul
Estas notas serão retomadas no dia 11 de Junho.
Raul
i)Continuando:
Em 1950 é a "première" no Royal Albert Hall das "Quatro Últimas Canções" de Ricardo Strauss, o testamento musical do compositor, falecido no ano anterior. Kirsten Flagstad é a solista escolhida, provavelmente pelo próprio Autor, e Furtwangler o maestro. Esse recital histórico foi há poucos meses editado depois de o som ter sido bastante depurado. Surprendentemente, ou talvez não, foi no mês de Abril passado o Cd mais vendido na Grã-Bretanha.
Também em 1950 Kirsten Flagstad canta, igualmente dirigida por Furtwangler, a Tetralogia dos Nibelungos no Scala de Milão. Mas em 22 de Janeiro de 1951 é o retorno ao Metropolotan de Nova Iorque com o argumento do seu director "Por que razão o melhor teatro do mundo não há-de receber a melhor cantora do mundo?". A ópera foi o "Tristão e Isoçda" e a cantora no final do primeiro acto é chamada à boca de cena 19 vezes para receber aplausos, algo que constitui um recorde na história daquele teatro. Todas as representações que se seguem são todos triunfantes, onde quer que elas sejam.
O ano de 1952 vai ser uma referência na história das gravações de óperas. Kirstem Flagstad, a imortal Isolda, dirigida pelo melhor wagneriano de sempre, Wilhelm Furtwangler, e apoiada por um grande elenco, de que se destaca o jovem Dietrich Fischer-Diskau, grava para a companhia EMI o "Tristão e Isolda" de Wagner. Uma Isolda de 57 anos para a eternidade. A gravação é justamente considerada como uma das melhores que se fizeram, como a "Tosca" da Calas ou o "Cavaleiro da Rosa" da Schwarzkopf. Qualquer melómano, apreciador de ópera, deve possuí-la. Depois desta gravação Kirstem Flagstad retira-se de cena, só dando concertos esporádicos e em forma de despedida. O de Nova Iorque em 1955 está gravado e mostra ainda a voz praticamente igual ao esplendor anterior.
Raul
j)Concluindo:
Em 1956 assina um contrato com os estúdios Decca, efectuando inúmeras gravações que incluem "lieder" de Schubert, Brahms, Grieg, Sibelius e muito Wagner, para além da ópera "Alceste" de Gluck. Esta série de gravações, que constitui um legado artístico de valor inestimável, culmina em 1958 com a gravação do papel de Fricka d´ "O Ouro do Reno" de Wagner, sob a direcção do maestro Georg Solti. É o início da série das quatro óperas do "Anel dos Nibelungos" e que é conhecida pelo "Anel do Solti", sem dúvida o maior feito discográfico da história da ópera. Esta épica realização terminará em 1965 com o "Crepúsculo dos Deuses", este já cantado por Birgit Nilsson, a justa sucessora de Kirsten Flagstad. Segundo as notas da Decca, aquando do primeiro ensaio, quando aquela senhora alta, já sexagenária, abriu a boca para soltar as primeiras notas, toda a Orquestra Filarmónica de Viena se virou para trás olhando, estupefacta com a grandeza de tão extraordinária voz.
Em 1958 Kirsten Flagstad é nomeada directora do Teatro de Ópera da Noroega, mas dois anos depois resigna devido aos tratamentos que uma terrível doença a começa a miná-la. Em 1961 ainda visita familiares e amigos nos Estados Unidos, mas vai passar a maior parte do tempo do ano seguinte no hospital, vindo a falecer no dia 7 de Dezembro de 1962. A sua memória é passados alguns anos perpetrada num museu na sua terra natal, Hamar, a umas dezenas de quilómetros de Oslo.
O legado discográfico da Flagstad é considerável, sendo grande parte registos ao vivo. Tenho, felizmente, parte considerável desse legado. A aconselhar o essencial recomendava:
O Tristão e Isolda (Furtwangler, EMI)
A Valquíria: Primeiro Acto ( Knappertbusch, Decca)
Wesendonck-Lieder & Arias (EMI 7243 5 62957 2)
Raul
Caro Raul
Agradeço-lhe a oportunidade que nos proporcionou de melhor conhecer a grande Flagstad.
Há "paixões" assim.
Todos nós colocamos num pedestal quem nos consegue deslumbrar com o seu talento, a sua voz, a sua interpretação.
Obrigado Raul.
Caro José,
Obrigado pelo seu obrigado, mas acredite com a maior das sinceridades que quem aqui tem de dizer obrigado sou eu, pois deu-me a oportunidade de prestar uma simples homenagem a Kirsten Flagstad e isso valeu muito para mim.
Raul
Enviar um comentário